*Sheron Mendes
A China determinou que influenciadores digitais que falem sobre saúde, finanças, direito ou educação só poderão continuar produzindo conteúdo se comprovarem formação acadêmica ou licença profissional. A justificativa é clara: conter a desinformação e proteger a população de conselhos irresponsáveis, sobretudo em temas sensíveis.
À primeira vista, parece uma medida sensata, afinal, quem discorda da ideia de exigir qualificação de quem forma opinião sobre assuntos tão sérios? Mas a questão convida a uma reflexão maior: até que ponto proteger o público não se confunde com controlá-lo?
A avalanche de informações que circula nas redes ultrapassa, de longe, a capacidade cognitiva humana de triagem e verificação. Nosso cérebro é submetido a uma torrente contínua de estímulos. Em termos neurocientíficos, isso produz sobrecarga cognitiva: o cérebro entra em exaustão, enquanto o sistema de recompensa mantém o usuário preso ao ciclo de engajamento.
Quando um influenciador sem formação técnica fala em tom de segurança sobre temas sensíveis, ele ocupa o mesmo espaço que, em outros tempos, pertencia a pessoas qualificadas. A diferença é que, agora, o poder de convencimento vem menos do saber e mais da performance. O carisma e tom incisivo substituem o currículo; a autoridade é medida em curtidas, não em competência. Nesse sentido, há mérito em uma regulação que busca devolver ao conhecimento sua responsabilidade social.
Por outro lado, é impossível ignorar o paradoxo da origem deste sistema que opera sob uma lógica de controle vertical da informação. A mesma China que tenta conter a desinformação é também conhecida por limitar o acesso à própria internet, filtrando o que pode ou não ser dito. É aqui que a fronteira entre proteção e censura se torna perigosa, quando o combate à mentira está abraçado com o silenciamento da dúvida.
Quando o poder decide quem pode falar, o pensamento crítico corre o risco de se transformar em obediência intelectual. O controle do discurso pode nascer do desejo de ordem, mas rapidamente pode se transformar em forma de vigilância sobre a consciência.
Há ainda um dilema ético-educacional mais amplo: se apenas diplomas validam a fala, o conhecimento vivido, empírico e comunitário é calado. O aprendizado também acontece fora dos muros da academia.
A solução, portanto, pode estar não na proibição, mas em formar para discernir. O antídoto contra a desinformação é a alfabetização digital, uma competência que deve ser ensinada desde cedo, na escola e em casa. Ela envolve mais do que saber usar um aplicativo: é compreender como funcionam os algoritmos, reconhecer vieses cognitivos, questionar fontes e, principalmente, regular as próprias emoções diante do que se consome.
Pesquisas de Philip Zelazo demonstram que o fortalecimento das funções executivas (conjunto de habilidades cerebrais ligadas ao autocontrole, à tomada de decisão e à análise de riscos) é um processo lento, que atinge sua plena maturação apenas na vida adulta jovem. Já os estudos de John Hutton (2024) indicam que essas mesmas áreas podem sofrer interferências negativas com o uso excessivo e precoce de telas, sobretudo em crianças cujo cérebro ainda está em desenvolvimento estrutural e funcional.
Em outras palavras, um cérebro desenvolvido para pensar criticamente não precisa ser tutelado, mas protegido durante sua formação. E esse processo de maturação tem um tempo fisiológico inegociável, que precisa ser respeitado. Por isso, restringir o acesso de menores às redes sociais não é censura, é cuidado neuroeducativo.
Proteger a sociedade da desinformação é um dever legítimo, mas restringir o pensamento é um risco. Quando o governo define quem tem voz, o perigo não é apenas político, é neurológico. Pesquisas em neurociência mostram que o ato de questionar ativa a neuroplasticidade, permitindo ao cérebro criar novas conexões e atualizar seus mapas mentais.
O futuro da educação, e talvez da própria humanidade conectada, depende de cultivarmos algo que nem diploma nem algoritmo podem garantir: a autonomia para pensar.
*Sheron Mendes é Bióloga, especialista em Neurociência do Comportamento e professora dos cursos de pós-graduação em Educação na UNINTER.
